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Por trás do voluntariado: traços de vivência e descaso

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A história de vidas que se cruzam e a denúncia de um abandono cruel. Idosos deixados por suas famílias têm de enfrentar o dia a dia no Amparo Santa Cruz. O relógio não importa e a noção do tempo se perdeu.  

 

Isabella Mércio

 

      Com os pés e o pensamento enraizados, um no chão e outro no tempo, Adair Gomes Monteiro (82) deixa escorrer uma lágrima. Sentada à direita da porta de entrada do Amparo Santa Cruz, localizado em Belém Velho, Porto Alegre, ela espera seu filho para buscá-la. Segundo ela, o que falta é o dinheiro. Caso contrário, já estaria embarcando em um ônibus para sua cidade natal – Santa Maria. Ela não gosta da comida, não gosta do abandono, nem do local. Ela gosta dos voluntários. Espera há três anos o dia em que sairá por aquela porta para nunca mais voltar. Foi-se a noção do tempo. O que eram três, Dona Adair transformou em um. E a vida, além de terminar naquelas paredes frias e amargas do Amparo, se torna atemporal.

      A pele marcada, com curvas sinuosas caídas sobre as bochechas, as pálpebras sonolentas e a memória seccionada compõem o passaporte para o asilo. O Amparo Santa Cruz abriga cerca de 60 idosos. A maioria não tem nenhum vínculo familiar. Nenhum. Nem um número de telefone, um endereço, um bilhete. O abandono cruel é espantoso de observar nos olhos de cada um. Cada qual com sua história, mesmo que a essa altura ela nem seja lembrada. Muitos esperam, convictos. Outros já estão conformados. “A família? Não tem família. Família morreu” – gargalha Haimundo Moelzer de Oliveira (79), também morador do Amparo Santa Cruz. A risada disfarça o choro iminente. O disfarce é a máscara utilizada pelos senhores mais receosos. O medo de admitir um sentimento diante de toda a sua história, na qual não houve preocupação e nem afeto. Descaso. Seu Haimundo mostra os dentes amarelados na mesma frequência com que a mão desliza sobre as pálpebras pesadas que escondem seus olhos claros já exauridos. Confinado em uma cadeira de rodas e com a mão esquerda quase totalmente imobilizada devido a um derrame que sofreu em 2012, ele se define, pronunciando com extrema dificuldade e engasgos as palavras, defeituoso: “Eu não gosto das visitas dessas pessoas. Elas não podem fazer nada pra mim. Eu sou defeituoso. Não corro e nem mexo a minha mão. Ela vai falar o nome agora pra mim e não me lembro.”

     A dificuldade de cada residente do Amparo, tanto física, como é o caso de Haimundo, quanto psicológica, como a constante espera pela família e os possíveis traumas, são trabalhados durante o tempo em que ficam na casa. Com atividades como bocha, poker, a hora do lanche e outros atrativos que os auxiliares e voluntários procuram oferecer, o tempo parece perder a extensão. Entretanto a dificuldade não existe apenas do lado interno da casa. Quem chega para ajudar, tímido e sem jeito, às vezes demora a se adaptar ao ambiente do asilo. A boa intenção nem sempre é suficiente nessas horas, pois há quem não entenda e não consiga se comunicar com quem vem de fora, tornando a ação menos prazerosa. Ismar Aguirre (79) não tem receio na hora de falar sobre os voluntários. O bigode branco e os poucos cabelos que ainda restam traçam uma vida solitária, porém precavida. “Sempre gostei dos voluntários. Gosto das pessoas, recebo bem. Tudo que vem de moças e meninos, senhores e senhoras para ajudar. Quem olha para a gente que não pode nem caminhar, né? Ajuda. Mas vou ser sincero: não são todas que gostam de conversar. O que eu quero com velho? Eles dizem bem assim. Eles pensam, essa juventude, que nunca vão ficar velhos. Essa é a verdade e eu sempre tive isso comigo”, lamenta.

     Quem se propõe a visitar o Amparo nunca tentou entender a colocação de Seu Ismar. Talvez nunca o tenham escutado. Não se deram ao trabalho de indagar se a posição de engajamento estava realmente fazendo a diferença na vida daquelas pessoas. Cada morador tem a sua particularidade, mas os voluntários insistem em inserir todos em um mesmo formato padrão. Segundo Nina Xavier e Eduardo Motta, voluntários do Amparo, o local é uma oportunidade de ajudar os idosos, visto que ambos são tímidos para atividades sociais. “É muito pesado escutar eles falando sobre a vida deles e como eles passaram muito tempo aqui. Estão só esperando seus filhos e dizem que só vieram passar um tempinho. A gente sabe que o mais provável é que eles vão ficar aqui até o final da vida deles. Eles se sentem muito solitários e a gente percebe isso. A gente joga carta, bocha e conversa”, reflete Nina. Jonas Rosa, outro voluntário, diz que os residentes necessitam de atenção. Naquele dia ele auxiliou uma senhora a se locomover até o refeitório, para o lanche da tarde.

    Nos corredores mal iluminados que levam ao refeitório, Ivanor Reginatto (55), professor do colégio Anchieta e voluntário há mais de 30 anos, conduzia um dos moradores em cadeira de rodas. As paredes eram compostas por azulejos brancos e quadrados, e as arestas metálicas das portas refletiam o vazio e a frieza local. Cada um recebia uma caneca com chá de maçã e dois pães separados por uma camada de doce de leite. Agrupavam-se por interesse, amizade e comodidade. Alguns sentavam aonde os colocavam. Não havia opção. Em frente à janela, no canto direito do refeitório, um solitário senhor de barba rala fazia o sinal de positivo com a mão esquerda. Usava um boné branco para trás, parecido com uma boina, e deixava as orelhas salientes. Ocupava o canto esquerdo da mesa e comia apenas as fatias de pão.

    No outro lado do Amparo, na casa principal, Dona Jurema Mello (77) tem as unhas pintadas por uma das voluntárias. Elas criam um pequeno salão de beleza toda sexta-feira. Levam a maleta cor rosa com uma infinidade de esmaltes e saem com uma infinidade de sorrisos. Jurema gosta de fazer as unhas e ondular o cabelo.“Fico muito satisfeita, alegre (pela visita). Passo uma semana me lembrando, assim, de vocês. Mas depois eu me esqueço”, conta.

    Reginatto explica o voluntariado como uma experiência única de vida e de aquisição de conhecimento. Conta que, todas as semanas, diferentes alunos o procuram para prestar auxílio aos idosos do Amparo. Isso o motiva a seguir nessa caminhada. Reginatto considera a solidariedade “uma das virtudes mais bonitas em um sistema capitalista, explorador e individualizado”. “Ser voluntário não é só ensinar. A gente vem aqui pra aprender. Eu me sinto um eterno aprendiz. Não tenho a sabedoria e a vivência que eles (idosos) têm, embora eu já tenha cabelos brancos e uma história pra contar”, complementa. Ele diz que o governo não presta ajuda ao Amparo Santa Cruz. Seu Ismar confirma a queixa, reforçando que, desde que mora no Amparo, nunca foi informado de nenhuma doação do governo. As obras realizadas na casa e os alimentos para os residentes provêm de doações voluntárias. A última reforma priorizada foi no refeitório. Segundo Daniela Trindade, coordenadora do Amparo, o ambiente era muito precário e dava a impressão de falta de higiene. Hoje, a casa conta com um amplo refeitório com quatro grandes mesas espaçadas e uma cozinha em boas condições.

    Asilos são, muitas vezes, a forma mais fácil de abandono ao idoso. Eles passam a viver confinados, sem vínculo afetivo com familiares e em uma sofrida e eterna espera. O papel do voluntário é amenizar o sofrimento e distrair os idosos. Cada morador do Amparo Santa Cruz e das demais casas de abrigo localizadas em Porto Alegre tem sua necessidade prioritária específica. Desde a necessidade física, como alimentação e locomoção, quanto psicológica – memória, sentimentos. É difícil para quem doa (seja algo material ou não) e para quem recebe. É um grande jogo de paciência da parte dos residentes de asilos. Um jogo de promessas não cumpridas, de despedidas não concretas e de esperança. Sim, esperança. Em cada visita, em cada abraço solidário, cada minuto escutando as diferentes histórias desses idosos, um fio de esperança é tecido na vida. E de fio em fio a teia se faz. E de voluntário em voluntário a vida se mantém.

Foto: Isabella Mércio
Foto: Isabella Mércio

Juntos somos mais fortes

Comunidade se une em prol da segurança

 

Nathalia Gaieski

 

     Um protesto de moradores dos bairros Porto Verde e Jardim Algarve, em Alvorada, fez nascer uma ideia para o combate aos criminosos. Unidos pelo medo de assaltos, os moradores criaram 9 grupos para a comunicação direta da comunidade a partir do aplicativo What’sApp no celular. O objetivo do grupo é publicar histórias, situações, fotos e divulgar qualquer atitude suspeita que ocorra nas ruas dos bairros.

      Segundo os criadores do grupo, os assaltos já vinham ocorrendo há bastante tempo, mas depois da abertura de duas ruas unindo os bairros a um novo condomínio, eles decidiram agir, montando uma barricada no local. O objetivo era coibir a ação de bandidos que utilizavam a rua como rota de fuga. Durante esta manifestação da comunidade, alguns vizinhos acabaram se conhecendo melhor e trocando ideias. Assim surgiu o grupo Vigilantes Comunitários.

     Uma das co-criadoras, Jandressa Wagener Toledo Dias, conta que toda vez que sai ou entra em casa, sempre está com medo. Não somente pelos bens materiais, mas principalmente pelo filho de 3 anos que fica sentado na cadeirinha no banco de trás. Jandressa relatou várias ocasiões em que rondou as ruas próximas à sua casa antes de decidir entrar, para verificar se não era seguida ou se não havia ninguém suspeito por perto.

    A rotina de Jandressa é muito semelhante a dos mais de 175 mil moradores da cidade. Alvorada é considerada uma ‘cidade-dormitório’. Sua proximidade com Porto Alegre faz com que grande parte de seus moradores trabalhe na cidade vizinha e retorne para casa somente à noite. Esta atitude acaba deixando as casas suscetíveis aos meliantes durante o dia, e torna as noites ainda mais assustadoras para os moradores que regressam, muitas vezes, em seus veículos particulares.

     A sensação de segurança e união que o grupo trouxe para os participantes tem transformado o retorno à casa de Jandressa mais fácil e menos tenso. Mesmo rondando as ruas antes de sentir-se livre para entrar em casa, ela revela um sentimento de proteção por ter mais olhos ajudando na vigília.

    Nas duas ruas que motivaram a criação do grupo, havia um terreno baldio que não era cuidado por ninguém. Como o local era estratégico, um dos membros integrantes do grupo, que preferiu não se identificar, ofereceu um toldo para que abrigasse uma viatura policial. A ideia era de que a viatura pudesse se posicionar com acesso mais fácil às ruas e aos passantes.

   Pois foi a partir desta doação que Alex Steffani, outro co-criador do grupo, decidiu organizar um mutirão para reunir aqueles que quisessem auxiliar na manutenção do local. Em apenas um domingo, o terreno baldio se transformou em praça. Steffani pediu aos membros uma doação mínima de dez reais e, com este valor, comprou tinta, ferramentas e gasolina para que os próprios moradores cortassem a grama. Com o restante do valor, eles contrataram um morador da comunidade para auxiliar na limpeza do local.

    O grupo também decorou a praça com pneus velhos, que foram pintados e transformados em vasos e canteiros. A praça se encheu de vida, com balanços, lixeiras coloridas, flores, árvores, caixa de areia, escorregador e até tabuleiro de damas. Tudo feito pelas mãos da comunidade. Dos mil membros, 90 participaram ativamente da restauração do local, de acordo com Steffani:

   “A união da comunidade é algo mágico, e o intuito é contagiar muito mais para continuar revitalizando os locais esquecidos pelo poder público. Não temos ideologias políticas, muito pelo contrário, acreditamos na força da união do povo sem intermediários. Juntos somos mais fortes, e aqui em nosso bairro nunca estivemos tão unidos”.

   Segundo Maurício Campos Padilha, efetivo na Brigada Militar há 30 anos e responsável integral de Alvorada, o número de assaltos não aumentou na região. Mas o fato de a comunidade estar unida já significa um bom sinal para o brigadiano.

   “É importante não ficar dentro do carro parado, observar os movimentos antes de abrir o portão e, para quem segue a pé, evitar distrações com o aparelho celular ou qualquer eletrônico que tire atenção. Se o assalto foi eminente, não se deve reagir.”

   Padilha fez um pedido à comunidade. Segundo ele, o comportamento típico é ligar para a polícia somente após o ocorrido. Mas para poder trabalhar com um sistema de prevenção, ele reforça à população que comunique qualquer situação suspeita para que seja enviada uma viatura.

  “Aos grupos de comunicação pelos aplicativos do celular, peço que façam contato pelo número 190, número oficial e único meio válido que mantém um registro oficial”.

Foto: Nathalia Gaieski
Foto: Nathalia Gaieski
Foto: Nathalia Gaieski
Foto: Nathalia Gaieski
Foto: Nathalia Gaieski
Foto: Nathalia Gaieski
Foto: Nathalia Gaieski
Foto: Nathalia Gaieski
Foto: Nathalia Gaieski
Foto: Nathalia Gaieski
Foto: Nathalia Gaieski

Quinze anos do Boca de Rua

Único jornal do país pensado, produzido e vendido exclusivamente por moradores e ex-moradores de rua completa 15 anos em 2015

 

Gisele Vargas

 

    Em uma sala escura do Museu de Comunicação José Hipólito da Costa, acomodados em cadeiras dispostas em um grande círculo, aproximadamente 35 pessoas se reúnem. “E então, pessoal, vamos começar?”. Assim, Charlotte Daffol, uma das colaboradoras do Jornal Boca de Rua, dá início a mais uma reunião de pauta do grupo. O burburinho cessa e uma breve apresentação de quem não faz parte do Jornal abre os trabalhos. Em seguida, as ideias ecoam pela sala, acolhendo quem chega atrasado. Essa rotina já dura quinze anos.

  Em agosto de 2000, nascia na Praça Dom Sebastião, nas imediações do Colégio Rosário, em Porto Alegre, um projeto ousado: o único jornal do país pensado, produzido e vendido exclusivamente por moradores e ex-moradores de rua. Idealizado pela Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (Alice), o objetivo do Boca de Rua é construir uma ponte entre esse grupo e a população que já nasceu com o privilégio de ter uma casa. Além de ser uma experiência transformadora, o envolvimento com o jornal legitima as pessoas em situação de rua. As torna cidadãs.

    A jornalista Rosina Duarte, fundadora do jornal e coordenadora da Alice, explica que no grupo não há funções definidas. “O Boca não tem cargo. Ele é decidido pelo grupo, a partir de debates sobre os principais problemas da sociedade, como moradia, trabalho, saúde e preconceito. O jornal é autogestionável e possui regras, que embora nunca tenham sido escritas, normalmente são obedecidas por todos”, afirma.

   Trimestral e com tiragem de 12 a 15 mil exemplares, cerca de 40 exemplares são distribuídos para cada colaborador toda semana, que o vende a R$ 2,00 e tem toda a renda revertida para si. Para a produção do periódico, Rosina diz que o projeto conta com diversas parcerias. A principal delas é a Federação dos Metalúrgicos, que paga a impressão das edições. Também há recursos adquiridos em eventos promovidos pela Alice e em prêmios conquistados.

    Rosina lembra que apesar do objetivo central do projeto não ser tirar as pessoas da rua e das drogas, cerca de 40% dos moradores que já passaram pelo jornal melhoraram sua condição. “É um número considerável, se parar para pensar que nosso foco não é este”, comemora a jornalista.

   Há oito anos no projeto, Cícero Adão Gomes de Almeida, o Tinga, é um dos integrantes mais ativos nas reuniões. Propõe pautas, expõe problemas e faz sugestões de participações em eventos. “O que o Boca me proporciona? Olha, o projeto já tirou muita gente da rua, mudou muitas vidas. Além de renda e estabilidade, ele me trouxe 50 irmãos e uma mãe muito dedicada”, revela Tinga. Ele é um dos repórteres devidamente identificados com crachás que vendem o periódico nas sinaleiras de Porto Alegre. “Vende mais que Zero Hora e Diário Gaúcho!”, celebra.

   As reuniões ocorrem nas terças-feiras. Nelas são sugeridas e votadas as pautas, definidas as equipes de reportagem (em torno de três, todas com um acompanhante profissional), anotadas as perguntas e os materiais a serem utilizados. O Boca de Rua dispõe hoje de um gravador e uma máquina fotográfica. “Na verdade são duas, mas uma está estragada”, lamenta Rosina.

    Após as entrevistas, o material é transformado em texto, com passagem da linguagem oral para a escrita, cuidando sempre a ética e a clareza das informações. “O Boca trabalha com várias propostas de pautas, mas, claro, os guris tem preferência por dar destaque à realidade deles”, avisa Rosina. Além disso, o jornal é assumidamente parcial, pois a Alice não acredita na imparcialidade das informações.

    O projeto já rendeu vários prêmios. Já foi objeto de mais de 50 trabalhos acadêmicos, tem dois livros publicados, duas exposições fotográficas, quatro micro-documentários e participações em grandes eventos, como o Fórum Social Mundial, fora seminários em diversas cidades.

   Apesar de o jornal ser voltado aos adultos, ele também trabalha com um encarte produzido por crianças em situação de vulnerabilidade social. “Este trabalho mostra o mundo para as crianças e as mostra para o mundo”. As crianças realizam o Boquinha, no entanto não vendem os jornais. “As famílias das crianças têm um ajuda de custo e as mães participam de reuniões mensais”, esclarece Rosina.

  “O Boca me dá muito mais do que eu poderia dar!”. Essa frase é da Charlotte, mas poderia ser de qualquer um dos integrantes do Jornal. Todos são muito envolvidos no trabalho. Interessados. Responsáveis. Profissionais. “Ao longo dos anos, a minha experiência no Boca me deu outro entendimento da sociedade”, expõe a colaboradora. O grupo não deixa de surpreender seus integrantes. Pelas decisões. Pelos posicionamentos. Pela experiência inédita de democracia, de relacionamento, de vida. “Mais de uma vez, um debate com o grupo me fez mudar de opinião ou enfrentar um problema de uma forma que eu não enxergava”, destaca.

    Charlotte participa do Boca desde 2008, quando as reuniões aconteciam no segundo andar do Restaurante Popular, em frente à Rodoviária. Ela diz que nem sempre morou em Porto Alegre, mas procurou frequentar as reuniões frequentemente. Sempre foi recebida de braços abertos, como se nunca tivesse faltado a um encontro. “O Boca de Rua é muito mais que um jornal. É uma vivência, com suas alegrias e suas tristezas, seus sucessos e suas decepções também. Um universo em si, que se abre a cada terça-feira e muda todo o resto da semana”, finaliza Charlotte, sintetizando em três frases o sentimento que une e move todas as pessoas envolvidas neste importante processo comunicativo de integração e reconhecimento social. Há 15 anos.

O que mudou com as políticas de cotas nas universidades brasileiras

Em três anos, 150 mil negros ingressaram nas universidades por meio das cotas. País deve atingir 50% das vagas reservadas por critérios sociorraciais até o ano que vem

 

Victória Citton

 

       Em 1997, apenas 2,2% de pardos e 1,8% de negros, entre 18 e 24 anos, cursavam ou tinham concluído um curso de graduação no Brasil. O baixo índice indicava que algo precisava ser feito. Foi sancionada, em agosto de 2012, a Lei das Cotas nas Universidades Brasileiras. Desde sua criação, já ofereceu cerca de 150 mil vagas para negros. O sistema foi projetado pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Em 2015, vai completar três anos.

    No Brasil, desde o período da escravidão até hoje, se passaram apenas cinco gerações. Segundo a socióloga e professora do curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Ruth Ignácio, a população negra ainda sofre as conseqüências. Sem conseguir habilitar-se a competição da lógica de mercado, juntamente com a falta de instrução, continuam sendo a mão de obra mais barata. ”O Estado brasileiro também cria as cotas étnicas como uma medida de acelerar a economia, projetando transformar o país em potência e melhorar o mercado consumidor. Também possibilita direitos inalienáveis e o acesso a um bem que, há muitos anos, era privilégio dos brancos”, argumenta.

     A Lei Federal prevê que até o fim de 2016 seja reservada metade de todas as vagas em universidades e institutos federais para cotas raciais e sociais. Em 2013, primeiro ano de vigor do novo regulamento, 50.937 estudantes negros se matricularam por meio do sistema. No ano seguinte, esse número subiu para 60.731. O prazo para que todas as instituições se adaptem à obrigatoriedade vai até 30 de agosto de 2016.

    Segundo dados do Ministério da Educação (MEC), referentes aos dois últimos anos, das 128 instituições federais de ensino que atualmente participam do sistema, todas cumprem a legislação. Em 2013, de acordo com a Seppir, 33% das vagas de graduação foram reservadas para cotistas, sendo 17,25% delas destinadas a estudantes negros. Já em 2014, o número de vagas subiu para 40% e de negros matriculados para 21,51%.

    Mesmo com a melhora nas estatísticas, há quem defenda que 50% não é suficiente, visto que as cotas são para universidades públicas. “A maioria da população do país é composta por negros e pessoas com baixa renda, logo, a sociedade não é totalmente representada por essa porcentagem”, reclama Fernanda Evélyn, estudante de Serviço Social e cotista na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

     Conforme o estudo “As políticas de ação afirmativa nas universidades estaduais”, de novembro de 2013, do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da UFRJ, a região Sudeste é que menos inclui, com (16,7%). A Região Centro-Oeste é aquela com o maior percentual de vagas reservadas (40,2%), seguida pela Região Nordeste (32,6%), Sul (29%) e Norte (26,6%).

      Emilyn Pedroso, cotista na UFRGS, conta que a adesão das cotas na faculdade foi um processo de muita luta. “Éramos mais novas na época, mas é sabido da dedicação da comunidade negra, que ocupou a reitoria da universidade em busca de seus direitos”, lembra. Fernanda faz parte do Coletivo Negração, onde é discutida a segregação, mesmo depois do ingresso na universidade. Apesar de ser a favor das cotas, ela testemunha diversas dificuldades dentro do campus. “Os cotistas sempre começam o ano letivo no segundo semestre, sendo prejudicados pela escassez de horários e disponibilidades de cadeiras, matriculando-se sempre nas vagas restantes”, critica.

   Segundo a pesquisa "A Política Pública de Cotas em Universidades, Desempenho Acadêmico e Inclusão Social", feita pelos doutores em Educação Teresa Olinda Caminha Bezerra e Cláudio Gurgel, o desempenho acadêmico dos cotistas era bastante semelhante ao dos estudantes que ingressam pelo acesso universal. Para Fernanda, entretanto, a diferença é representada no tempo levado na graduação. “Somos prejudicados porque precisamos conciliar estudo com trabalho, e por não termos um preparo no ensino de base eficiente”, ressalta.  

    Fernanda lamenta que a falta de auxílio e os preconceitos sofridos depois de inserção na universidade ainda são reais. Mas acha que são visíveis as diferenças dentro do ambiente acadêmico. “É possível ver uma maior circulação de negros na universidade”, destaca, e finaliza acreditando na busca por resultados a médio e longo prazo: “logo teremos representatividade na sala de aula, vamos conviver com professores negros, além de uma maior igualdade em todas as áreas”.

   Em três anos, a Lei de Cotas nas Universidades se mostrou um instrumento eficaz. Mais negros e pessoas de baixa renda, que antes não teriam oportunidade, entraram nas universidades. Embora discretamente, as desigualdades existentes na sociedade brasileira vão diminuindo. Antes de o projeto ser aprovado, 18 das 58 universidades federais do Brasil ainda resistiam em aplicar alguma política de cotas ou bônus. Desde o vestibular de 2013, porém, por força da legislação, todas as instituições aderiram, ampliando o número disponível de vagas de 140 mil para 188 mil.

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EXPEDIENTE

 

Edição: Douglas Lacerda, Giovane Gonçalves Santayana, Luiza Fonseca e Karoline Leandro Santos

Projeto Gráfico: Camille Rocha, Julia Lazaretti dos Santos e Lauriane de Castro Belmonte

Supervisão: Almir Penha de Freitas e Juan de Moraes Domingues

Reportagens: Aline da Silva Possaura, Felipe Silva Menezes, Maria Karolina Soares de Souza, Tamiris Alana Candido de Souza, Cassia Marques Martins, Elisa de Souza Pegoraro, Marina Castaldelli Spim, Rafaela Santos de Souza, Anderson Fonseca dos Reis, Laís Maria Escher, Letícia Bay de Almeida, Pedro Henrique Abdala Pinheiro, Lucas Lagni Cancello, Matheus Beling D'Avila, Pedro Zandomeneghi, Viviane Farias Helm, Marcos Antônio Júnior, Maicon Hinrichsen Baptista, Aline da Silva Possaura, André Taquari, Nunes Fagundes, Raquel Baracho de Borges, Ana Paula Silva de Abreu, Carolina Estivalet Zorzetto, Nathalye Lucas Miranda, Gisele de Lourdes Pereira, Isabella Ferreira Pereira, Nathalia Gaieski, Carolline Viana Bernardes, Cristina Fragata dos Santos, Eniederson Farezin Miranda, Sthefanie Floriano Bernardes, Bruna Reis, Gabriela Giacomini Pinto, Nathalia Hamme Pádua, Thiago Silva de Oliveira, Victória Citton

 

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