
COMPORTAMENTO
Identidade de gênero: Direitos Humanos frente à equidade

Nina Spim
Segundo o Disque Direitos Humanos - também conhecido como o Disque 100 - o Brasil possui o maior índice mundial de violência contra os travestis e transexuais, além de totalizar 40% dos homicídios contra a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Trangêneros). A ausência de notícias que orientem essa parcela da população e o desconhecimento de informações, fazem com que as vítimas não denunciem tais crimes.
Nos últimos 20 anos, as políticas públicas têm contribuído para que os transgêneros sejam reconhecidos, porém, isso acontece através do ponto de vista da patologia, ou disforia de gênero. O judiciário colhe o discurso médico para atestar que a pessoa tem o direito de ser submetida à cirurgia de troca de sexo, ou a retificação do registro civil, caso contrário estará em sofrimento psíquico. Justamente por isso, o assistente social Guilherme Gomes Ferreira afirma que o sistema público não se atenta ao social. “A pessoa não está em sofrimento por causa de sua identidade, mas porque a sociedade a violenta o tempo todo”, explica Ferreira, que acompanhou demandas de transexuais enquanto trabalhava na Assessoria Jurídica da UFGRS.
Por lidar com a questão de gêneros há algum tempo, ele acredita que as pessoas devem superar as noções que têm sobre a desconstrução dessa identidade. “Não acho que a sociedade vai chegar a um momento que desconstruirá o que é ser menino e ser menina, porque a noção de desconstrução significa que nada será colocado no lugar e que teremos uma sociedade sem gênero”, argumenta.
Ferreira também ressalta que a falsa noção de igualdade invisibiliza as diferenças que são comuns às pessoas e, dessa forma, fala-se que direitos específicos não são necessários. Antigamente, esses direitos eram pensados para pessoas de classes dominantes. No entanto, hoje se trabalha a percepção de que todos os grupos sociais têm direitos particulares e, assim, tenta abranger todos os grupos marginalizados historicamente que desejam afirmar seus direitos sobre essa perspectiva. “Não é de forma homogenizadora, mas equivalente”, explica o assistente social.
A questão da adequação em um determinado gênero começa muito cedo na vida das pessoas, muitas vezes antes do nascimento de um bebê. A psicóloga Rúbia Dias observa que a separação de gêneros se intensifica anos mais tarde, quando os pais e a sociedade começam a educar as crianças sobre sentimentos e comportamentos, que elas podem ou não ter, dependendo se são meninas ou meninos. “A criança, nesta idade, não tem discernimento nem raciocínio crítico desenvolvidos para saber que tais noções de certo e errado são impostas pela sociedade. Logo, se um menino gosta de brincar de bonecas, ele simplesmente gosta daquela brincadeira. São os adultos e a sociedade ao redor dele que colocam nesta brincadeira uma série de pré-conceitos e valores que não lhe pertencem ainda”, afirma Rúbia.
Desde Julho de 2014, o combate à discriminação e desigualdade de gênero tem se intensificado com as metas relacionadas ao Plano Nacional de Educação (PNE) nos âmbitos municipais e estaduais. Foi proposto o prazo de um ano para que documentos relacionados à educação fossem aprovados, prevendo dez anos de novas condutas. O combate à exclusão, entretanto, vem sendo resistido pelos setores mais conservadores do governo, que relutam em apoiar o Plano. Em alguns municípios e estados, ele está sendo retirado do planejamento educacional a longo prazo.
A resistência está além dos cargos de governo, pois o debate de gênero ainda não é pensado com frequência dentro do corpo docente e inserido nas grades curriculares, ou atividades extras escolares. “Os professores não se deram conta de que estão sendo requisitados para lidar com uma série de outras questões”, afirma Ferreira, que promoveu oficinas de gênero e sexualidade em escolas públicas entre 2009 e 2011, ligadas ao projeto da ONG SOMOS (que trabalha a interdisciplinaridade das áreas de Educação, Saúde, Justiça, Comunicação e Arte, abordando temas como Direitos Sexuais, Direitos Reprodutivos e Direitos Humanos). A violência, a pobreza, a desigualdade social e as diferenças de etnia, raça e sexualidade, que pouco faziam parte do ambiente escolar, hoje em dia fazem com mais facilidade.
A pedagoga Mariana Mu trabalha com crianças da Educação Infantil e tem uma visão diferente da maioria dos que já atuam em escolas há algum tempo. Ela acredita que é importante conversar sobre as diferenças e igualdades de gênero de maneira tranquila, sempre propondo questionamentos e reflexões aos alunos. “A principal questão a ser trabalhada é se existem coisas de meninos e meninas. Acredito que não e que apenas há preferências por brinquedos, brincadeiras e cores”, explica. A falta de debates sobre questões de gênero não permite que alunos se reconheçam no ambiente escolar e promove ainda mais o preconceito trazido de casa. “Vejo constantemente crianças reproduzindo preconceitos socialmente estabelecidos. Então, as que fogem destes padrões algumas vezes são excluídas”, finaliza.

Em tudo achai graça

Cássia Marques
Uma classe de humoristas possui acesso pleno e censura quase livre na abordagem de um tema tão pretendido por muitos comediantes tradicionais: a religião. O gênero batizado de “humor gospel” pode ser contestado por evangélicos tradicionais, mas arrebata milhões de seguidores nas redes sociais e, até mesmo em shows de stand up comedy.
Os comediantes são jovens, em sua maioria, assim como o público. Através de esquetes, paródias, charges, memes, apresentações e diversos recursos, fazem humor com rotinas, costumes, ditados e jargões do meio evangélico. Muitas vezes, ele vem em forma de críticas ácidas ao sistema religioso, às interpretações distintas de trechos da Bíblia e aos líderes e artistas do meio, gerando polêmicas e contestações dos mesmos.
Por não estar na mídia tradicional, o gênero pode parecer pouco representativo, mas a contabilidade milionária de views prova o contrário. Um dos precursores do humor gospel em esquetes é o advogado e humorista Jonathan Nemer. O canal Desconfinados, de sua autoria, ultrapassa 43,5 milhões de visualizações no youtube e seus vídeos aparecem frequentemente na lista dos mais populares no Brasil. Nemer - que já chamou a atenção de programas como Profissão Repórter e Jornal Hoje - é evangélico, mas ressalta que o canal não possui segmentação. Contudo, grande parte das produções evidenciam temas religiosos, como “5 formas de não paquerar na igreja”, “Circuncisão” e “Oração indireta”.
O segmento passou a se consolidar em 2010, quando o humorista cearense Thiago Matso criou o primeiro blog de humor cristão, o Profetirando, inspirado em blogs como Kibe Loco e Não salvo, mas destinado a um público ainda não alcançado de maneira específica. Por ser o pioneiro, herdou também a resistência e as críticas mais rígidas. “Todas as críticas caiam em cima de mim. Hoje não, em cada esquina nasce uma página de humor gospel.” Mas ele acredita que a dificuldade não se limita a comédia de cunho religioso. “O politicamente correto tomou conta de tudo, não se pode mais brincar com ninguém ou nenhum grupo”, comenta.
O comediante, que vive do humor há 10 anos e faz stand up, também fala de temas do cotidiano, como relacionamentos, trânsito e infância. “Mesmo em bares e teatros, procuro não usar palavrão ou pornografia em minhas piadas”, diferencia. O lema “Em tudo achai graça” é uma adaptação do conselho da Bíblia “Em tudo dai graças”. Presente em diversas redes sociais, Matso calcula um alcance mensal de 300 mil pessoas. A marca possui ainda uma loja online com artigos personalizados. A sua peça “Casos e Causos” já foi vista por mais de 100 mil pessoas em todo o país.
A cultura gaúcha também possui representação do gênero. O Pastor Gaúcho é conhecido entre os evangélicos por suas adaptações de textos bíblicos para a linguagem dos pampas. “Ainda que tua fé seja curta feito coice de porco, nada te será impossível, tchê!”, escreve em uma variação do conselho de Jesus. O personagem foi criado em 2011, pelo comunicador da Rádio Felicidade Gospel Anderson Alves da Luz. A página do facebook possui mais de 166 mil curtidas e o Pastor realiza apresentações em eventos.
O criador revela que entre os gaúchos, a aceitação foi a melhor possível. “Percebi que não eram só evangélicos que curtiam e compartilhavam, pois além de lidar com a fé, estamos resgatando uma linguagem que se perdeu ao longo dos anos, é algo meio nostálgico”, explica. Ele conta que a maior resistência vem de outros estados. “Quem não conhece nossa cultura acha que é só mais um que faz piada dos cristãos.”
Um dos seus inspiradores, o humorista Jair Kobe, criador do personagem Guri de Uruguaiana, avalia essa segmentação como positiva. Para ele, o humor tradicional, principalmente da televisão, apresenta mensagens opostas ao que os evangélicos pregam. “É um nicho de mercado excelente, com um público cativo muito grande. O humor é um tema universal e utilizar para passar uma mensagem da Igreja é muito bacana”, opina.
Ele acrescenta que não apenas o tema religião exige cuidado na abordagem. “Sempre irão existir fiscais do politicamente correto”, analisa. Assim como o Guri de Uruguaiana é um dos maiores embaixadores da cultura gaúcha, trazendo o gauchismo tradicional para a contemporaneidade, Kobe acredita que o humor evangélico possui o mesmo objetivo: “traduzir as mensagens para uma linguagem atual, que atraia os jovens”.
A essência desse segmento não é o conteúdo exclusivo para um grupo de pessoas. Para o dono do Profetirando, o que o caracteriza é a leveza, a pureza e o humor limpo para toda a família. Matso avalia como “apelação” o uso de palavras de baixo calão e sexualidade explícita na comédia.
Já o criador do Pastor Gaúcho considera que o termo humor gospel não passa de um rótulo. “É um humor sadio, eu não preciso dizer um palavrão ou fazer uma piada preconceituosa para ser engraçado”, diz. Mas acrescenta que sempre reserva um tempo para promover a reflexão e falar do amor de Deus. “Tem muita gente talentosa nas igrejas, foi-se o tempo em que éramos tachados de quadrados e ultrapassados”, finaliza.
No entanto, o uso de assuntos religiosos como matéria-prima para o humor é alvo de crítica por parte de alguns evangélicos e tabu entre lideranças, principalmente de igrejas pentecostais. “O cristão deve seguir princípios de prudência e seriedade quando se trata do evangelho. Não concordo com músicas e mensagens que modificam os princípios bíblicos, mas também discordo das críticas satíricas aos que erraram”, opina o pastor Adelar Blanco, da Igreja Evangélica Assembleia de Deus. O líder é enfático ao acrescentar: “Jesus Cristo nunca foi encontrado fazendo piada”.
O sucesso dos produtos destinados aos cristãos ultrapassa as barreiras da internet. De acordo com pesquisa na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em 2012, o mercado gospel movimentou cerca de 12 bilhões no Brasil. E ainda, segundo o último censo do IBGE, mais de 42 milhões de brasileiros pertencem a alguma denominação evangélica.